28/11/2008

Chão de Madeira


O colorido e o preto e branco, lentamente, misturavam-se. Beijou-a. Colorido, trazia uma nova perspectiva; uma nova esperança. Quente, recobria o seu pequeno corpo com os músculos palpitantes, papel que até agora fora desempenhado pelos agradáveis e coloridos cobertores, que agora se encontravam desarrumados.
A amargura, tão viva no recente telefonema mal-educado, agora parecia diluir-se. Saía de todos os seu poros, pouco a pouco, conforme se arrepiava. Aos poucos o colorido mancha o preto e branco, com leves pinceladas de pele contra pele. Os corpos pintam-se, devagar.
Um estrondo repentino. Barulho seco e curto. O cobertor continua na cama, ainda desarrumado, mas triunfante. O curto silêncio é engolido por risadas. Inocentes risadas. Eles estão no chão, caídos. A mistura de cores se completa.
Os tacos de madeira sentiram sua cera diluir-se com o suor, e resmungam, por minutos que pareciam inacabavéis. Há um suspiro. Então outro. Agora silêncio, e um cheiro que só eles sentiram. Ficaram ali, não importa por quanto tempo, pois parecia infinito.

Rua das Palmeiras, 102, São Paulo - SP, Brasil /


Olá Luísa. Tudo bem?
Espero que sim.

Não se assuste com o remetente desta carta, eu realmente estou na Itália.
Não se faça de desentendida... Não finja uma falsa surpresa, Luísa. Não estou vendo seu rosto enquanto lê. Sem máscaras; não há mais necessidade de usá-las, não há a quem enganar.
Eu descobri tudo. E já faz um tempo. Só estava esperando meu passaporte sair.
Tomei a liberdade de pegar meus discos da Billie Holiday, mas acabei esquecendo (de propósito) os discos do Bee Gees e algumas cuecas, que julguei velhas.

Creio que meu desaparecimento repentino tenha lhe causado surpresa.

Enquanto eu deslizava pelas estreitas ruas de Gênova, numa velha e agradável bicicleta alugada, pude sentir toda a liberdade que me foi privada durante esses anos; anos de seu falso ciúmes, e de minha mania de tentar ameniza-lo com meu romantismo.
Passando por Roma eu pude admirar o Coliseu, imponente, mas já gasto pelo tempo, com algumas partes despedaçadas. O seu formato redondo lembrou a nossa aliança, que está na segunda gaveta do criado-mudo. Pode ficar com ela.
Aproveitei para visitar a Fontana Di Trevi. A beleza das estátuas que adornam-na é hipnotizante! Joguei algumas moedas para fazer desejos, como é de costume nesta fonte. Uma das moedas joguei em seu nome, desejando que tenha uma vida feliz.
Escrevo esta carta em Veneza. Estou em um restaurante móvel que flutua sob o Canal Grande. Não é a toa que dizem que Veneza é romântica! Os passeios de barco incitam o verdadeiro romance e o cheiro da comida lembra paixão e calor, coisas que eu sempre procurei e continuo a procurar.

Estou pronto para começar tudo de novo.
Sem você.

Adeus, Luísa
Vítor.

26/11/2008

Peixes, Aquários, Geladeiras e Microondas


O ruído do microondas me deixou surdo. Ele se mistura com o barulho da geladeira e do aquário, que é um pequeno pedaço de mar, que engana os peixes. Eles não sabem que estão num aquário por que a memória deles só dura três segundos. Mas mesmo assim eles parecem me olhar, tristes e melancólicos. Outro dia um peixe pulou do aquário. A princípio eu achei que fosse um acidente, mas agora eu penso que o peixe tentou suicídio. É sério. Foi uma decisão tomada em segundos.
Eu estou na cozinha, com o barulho do microondas, da geladeira, e do motorzinho do aquário. A minha família toda está na sala, assistindo algo na televisão nova de proporções faraônicas. A televisão está alta, e os peixes parecem incomodados com isso. Peixes não devem gostar de televisões, por que televisões lembram aquários. Mas aquários com pessoas dentro, invés de peixes. É complicado.
Antes o aquário estava na sala, numa mesinha. Mas minha mãe tirou, acho que ela iria por algum enfeite de natal ou alguma coisa do tipo. Pena que nenhum peixe vai saber da incrível mudança, por conta de sua curta memória.
Um aquário é um pequeno pedaço de mar que engana os peixes, como eu já falei. Não é diferente das nossas casas, nem dos nossos bairros. Eu só queria ter a memória de três segundos, aí eu não cairia numa rotina. Os peixes nunca têm rotina, por que eles não têm tempo para isso. Eu também não me preocuparia, a não ser por três segundos.
Antes dos peixes quem habitava a cozinha (além da geladeira e do microondas) era o Papagaio. Eu conversava com ele, mas ele parecia não gostar de mim, não pela minha aparência, mas acho que pelas condições em que ele se encontrava. Ao contrário dos peixes ele não teve a sorte de uma memória de segundos ou de ser enganado com um pequeno pedaço de algum lugar. Teve o azar de ter uma boa memória, e azar ainda maior de conseguir repetir as merdas que as pessoas falam para ele. Eu trocava algumas palavras com ele, até que decidiram colocá-lo no quintal. Agora é raro vê-lo, por que não vou muito ao quintal.
Fico pensando, será que algum dia vão me colocar na cozinha também, no lugar dos peixes? As coisas simplesmente são assim?

18/11/2008

Morte?


-Ei você...
Já sentiu um vazio se instalar dentro do peito, sorrateiro e covarde?
Já sacrificou horas de pensamentos vazios querendo que estes desaguem n'um abraço, verdadeiro abraço, por longo tempo?

-Eu sou a morte. Também sou vazio, mas não sorrateira ou covarde. Criar o vazio foi preciso, pois a cada tarefa sou tristeza.
Eu sou o próprio sacrifício, que te aperta com um abraço, por uma eternidade, se assim quiser.

-Teus braços são frios, e tuas roupas rubras não esquentam. De ti não quero abraço. Sua pele macilenta arrepia-me! Suo frio diante do seu olhar tranqüilo... Saia daqui!
Deixa-me em paz!

Lembrete



Roger,

Passe no mercado. Estamos sem molho de tomate.
O suco de laranja está atrás da melancia (aposto que não acharia).
Tô com saudades. Que horas você chegou do escritório
ontem?

Te amo,

sua
Carolina.

16/11/2008

Acaso


-Marcar minhas formas em teu corpo, como papel e manchas de tinta, pingadas ao acaso.

14/11/2008

Sem Título e Vergonha


O metrô vem sorrateiro, com seu rugido profundo. Engole-me com suas portas automáticas, me transportando como uma sardinha infeliz. Gasto todos os meus trocados para andar por debaixo da terra e por cima de ruas. Gasto minhas horas dentro desta lata de ferro, gasto meus olhos em túneis que não têm paisagens. Túneis quase sempre escuros, que dão a sensação certa da incerteza, a eterna sensação do sentir-se perdido. Com a esperança de chegar a algum lugar, esperamos, nessa imensa e comprida sala de espera.
E tudo isso, garota, para chegar à sua casa, e te beijar, escondido, contra paredes, em cima de mesas, rolando pelo chão encerado de todos aqueles cômodos, desde que estejam vazios. Toda essa aventura angustiante desagua na segurança destes olhos serenos e amendoados. Teus olhos são duas fontes que me encharcam todo o corpo.
A poluição de todas as ruas se torna distante quando te pego pela cintura e afundo meu rosto exaurido pelo sol em seu pequeno pescoço, que é tão branco quanto marfim e cheio de pequenas pintas, bem como seu corpo inteiro.
E por falar em corpo, lembro de teu cheiro, que é presente em toda sua pequena extensão, mesmo quando não usa perfume. Esse cheiro é teu e só teu. Quando o sinto, minhas roupas pensam em suicídio, e simplesmente rasgam-se, em tremenda euforia.

08/11/2008

Perda Irreparável: A Saga de um Pequeno Suicida

Era uma tarde de sábado, com aquele sol irritante e ruas cheias. Eu estava saindo de casa, para ver minha garota.
Então peguei uma bela fila no metrô e não tão logo assim entrei em um vagão. Como me é de costume, resolvi pegar um livro (que sempre levo comigo) para ler durante a viagem. Antes que eu pudesse abri-lo, tive um mau presságio seguido de um terrível arrepio. Comecei a suar frio, mas logo passou, então ri-me do susto bobo, que logo seria atribuído a alguma causa infundada.
O trem começou a deslizar sobre os trilhos, com seu barulho profundo. Então, definitivamente decidi pegar o livro para ler. Peguei-o com as duas mão, e meu intento era abri-lo como sempre faço: Usar a palma das mãos para apoia-lo e os meus polegares oara abrir no capítulo em que parei.
Mas assim que fiz o mínimo movimento com as mãos, algo um tanto ridículo aconteceu: Meu polegar direito caiu no chão e rolou pelo vagão, devido ao movimento do trem.
Ninguém viu meu dedo opositor rolando pelo chão: As pessoas estavam ocupadas demais para socorre-lo. Quase que uma senhora pisa em cima do pobre dedo, que escapou por pouco, quando foi chutado acidentalmente por algum outro pé, de sapatados engraxados.
Eu não pude fazer nada. Não pude levantar levantar para agarrar de volta meu querido dedo, pois havia uma moça ao meu lado, impedindo minha passagem com suas pernas. Sou muito envergonhado, não conseguiria pedir licença, nem pedir a alguém para pegá-lo para mim.
Quando finalmente a moça se levantou, estive livre para passar. Ao me aproximar do dedo desertor, o impacto do trem parando o fez rolar para os pés de um pequeno garoto, que pegou-o e pôs na boca, roendo minha unha. Estava com a mãe, mas esta estava se maquiando e não viu.
O mais horripilante de tudo isso é que eu ainda sentia tudo o que se passava com o meu polegar, como se ainda estivesse em minha mão e fizesse parte de mim.
Pensei seriamente em arrancar meu tão útil dedo opositor da boca daquele garoto, mas achei melhor evitar um escândalo. Além do mais, o garoto parecia tão entretido em sua brincadeira que não me senti no direito de pará-lo.
Esperei algum tempo, com a esperança de o garoto largar meu dedo pelo chão. Isso aconteceu quase que simultaneamente com as portas do trem se abrindo. Dei-me conta que já estava na estação em que deveria descer.
Encontrei-me em uma terrível escolha: Ou pegava de volta meu dedão ou desembarcava na estação certa, para seguir meu caminho normalmente. Não pensei duas vezes: Quando o sinal de fechamento das portas soou, saí correndo e consegui passar pelas portas por um triz. Quase perco minha estação. Daria um grande trabalho desembarcar em outra e voltar a pé.
Hoje vivo sem o polegar direito. Continuei sentindo tudo o que se passava com ele por terríveis 6 meses, e isso acabou quando moscas ou peixes o comeram por inteiro. Creio que foi isso que aconteceu pelas dores que senti, que pareciam pequenas mordidas.

Adeus

Ouviu, chorou e discutiu. Saiu.
A roupa em cima do piano
-Adeus.