18/12/2013

nós todos

I
Vamos falar de um clichê - de um pôr-do-sol, de uma flor bonitinha em um jardim.
Vamos recriar todas as nossas recordações infantis, afinal, Freud explica. Então beleza. Presta atenção: já ouvi dizer que explicações demais tiram o tesão da vida, das coisas e pessoas. Agradeça a ele, ao Freud. Seremos felizes com nossas próprias aflições, enlaçados num abraço fraternal.
Obrigado, herr.

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II
Todos estão na rua e caminham com movimentos bussolares. Eles tem o norte fincado na cabeça: vermelho e reluzente norte magnético.

Vejo os traços pontilhados que suas rotas deixam no chão enquanto caminham bem rápido.

E eu, tantas vezes andando na rua errada, procurando os números das casas, parando repentinamente e voltando no meio do caminho - embaraçado por voltar subitamente por onde vim
(nas primeiras vezes).

02/12/2013

Os Bens

Eu comprei lentes de vidro pra poder enxergar um mundo caduco. Lentes grossas.

Eu comprei um sensor digital que grava imagens de forma "profissional" (seja lá o que signifique) - uma retina-muleta para uma das minhas retinas reais.

Eu comprei umas tantas mutretas para me orientar nos caminhos do mundo. Comprei de sorrisos amarelos (e caros) à complexos vitamínicos inúteis.

Eu consumi pessoas inteiras.
Eu já cuspi nos chãos branquinhos da vida dos outros

e eles escorregam.

02/05/2013

O Quase e o Nem Isso

Eu sou o quase-escritor de pessoas-mais-ou-menos, que vivem em cantinhos de Mundo, trabalham em pedacinhos de empregos e fazem semi-coisas felizes.
Eu quero cantar o dia que não veio e o futuro que não foi, mas podia. Quero versar sobre os abandonados de passado, os carentes de agora; esses tipos assim meio vice-e-versa, meio tic-tac que não pára.
Eu, eu, eu. Sempre eu. Todo parágrafo desse quase-texto até aqui suportou meus “eu’s”. Me perdoa. Perdoa o Eu. A gente não quis passar má impressão. Retifico: Vou escrever tudo aquilo que não fui, que não vim, que não fiz. Serei o eu-não, pelo menos aqui nessas letrinhas
ou talvez nem isso, com sorte.

08/04/2013

Canto de Calçada


Existe um cantinho de calçada onde um cantinho-de-homem fica sentado todos os dias, sempre às três da tarde.
Pensei, a princípio, que era um morador de rua ou mendigo, mas ele nunca me pediu nada - tão orgulhoso eu, tão bicho-homem de assim pensar! Por que ele haveria de me pedir algo? Pedi até desculpas mentais da última vez que o vi.
Ele sempre "Opa", "Bom dia" e eu também "Opa.", "Bem o senhor?" e assim foi até que as máquinas chegaram e arrasaram com a calçada e derrubaram o quarteirão inteiro pra construir algo muito sólido que eu não sei o que é - e nem quero.
Passei do outro lado da rua ontem e olhei: sem cantinho de calçada, sem cantinho de homem nenhum que fala "Opa". Só as máquinas trrrrrrrr.
Meu grande desconhecido, meu confortável senhor foi-se com sua calçada virar escombro do mundo.

06/03/2013

Estação


Fiquei querendo escrever um texto à todos vocês que passaram tão rápido na minha vida e já se foram pra tão longe.
A gente se movimenta, a gente vai e vem e então se machuca. Não vê no jornal todos os dias as pessoas que morrem nos carros só por ir e vir de algum lugar? É isso que acontece em nossas vidas.
Certos movimentos bruscos machucam, e acredite: não sou o único vilão dessas histórias. Eu também saio machucado e em frangalhos sempre que vocês vão embora do meu peito.
Todos vocês que passaram tão rápido, deixo aqui minha eterna gratidão. Eu sou todo feito de vocês, por mais vis, por mais enganadores, por mais tristes ou decepcionados que sejam ou estejam. Por mais que os enganei, falei bobagens, os traí, os maltratei, os julguei, os esqueci, os deixei.
Sou feito de matéria-pessoa, quase um Frankstein de vidro e cola. Vocês estão aqui e eu já sou todo marcado. Sinto que o sol bate e brilha esses vidrinhos coloridos do meu peito

e dói.

27/02/2013

Noite-Vagos


Dormi de janela aberta e a noite entrou no meu peito. Agora ela não sai mais e tudo é coisa de noite aqui dentro de mim: Brisas fresquinhas, casais apaixonados namorando na praça, velhinhos de chapéu tocando samba nos bares. Será que é assim que nos tornamos noite-vagos?
Ou seria, melhor dizendo, noite-cheios?