09/08/2016

A hora e a vez



A brincadeira acabou. Você é como a criança que saiu debaixo da cama-esconderijo. A porta se abriu ou se fechou, tanto faz. A hora exata, cravada em segundos, chegou. Chegou, pois chamam seu nome em alto e irrefutável tom. Não há desculpa, nem passatempo. Não há sala de espera. Agora é você. Agora é isso que construiu pra ser você, que inventou pra fugir do medo e se auto afirmar nessa solidão coletiva e abismal chamada de mundo. Criatura fantástica forjada ao acaso sempre com a mão na maçaneta, com os dedos no botão, com os olhos no papel. Pronto pra saber o próprio destino - não importa o que está acontecendo, só importa que é sua hora e vez. 

Você se olha no espelho sabendo de tudo. Tudo numa indevida lucidez; numa eterna prancha dos tubarões; de joelhos no chão com o teu carrasco já a prender a respiração. Esse então é você: pelado e frágil diante do espelho, sabendo da morte e do sofrimento antes da morte. Tenta ensaiar um sorriso, tenta! Sabendo das guerras, dos estupros, do câncer, das crianças que somem nos shoppings, das bombas que virão. Por fim, sabendo de si mesmo e do desenrolar da própria vida. Você fecha a torneira e olha os dentes tão brancos e então nada acontece. A hora H foi embora, o momento crucial passou desvairado como um ônibus vazio na madrugada e você ficou, de novo.

08/07/2016

Nós humanos, espalhados como areia em ventania

Existe uma descontinuidade eterna em nossa vida. Somos pedaços ambulantes espalhados pelo tempo.
Algum filósofo ou sociólogo com maior paciência que eu para estudar vai saber o conceito certo, pragmático. Eu não, eu não vou saber, eu só quero sentir.

Acontece essa descontinuidade, essa quebra, pois somos dotados de uma memória atemporal e um corpo físico fadado ao tempo, temporal. Esse é o clássico embate dualista mente versus corpo, tão visto, tão falado - e  sem saída.
A memória é atemporal por que traz exatamente a mesma sensação, o mesmo cheiro, o sentimento - tudo - de um momento passado (e futuro, talvez) que fisicamente é incapaz de se reproduzir no presente, no momento em que se lembra. O corpo físico está fadado aos mandos e desmandos do tempo, trancafiado no plano cartesiano tempo versus espaço. 
A mente não tem essa limitação; a mente está além do tempo. A memória pode se deter em qualquer lugar do tempo, como se pausa um vídeo - e pode deter-se até em memórias que não aconteceram, como Freud mostra em suas "Lembranças Encobridoras". Não importa a veracidade da lembrança, mas sim as sensações que ela traz, sensações que não deixam de serem reais.
Mas enfim, lembrar de um momento reproduz no corpo a mesma reação física, mental, sentimental de estar realmente vivendo este momento novamente. O que difere o lembrar, na mente, do viver, de corpo presente, é o impedimento de interagir com o passado. Imutáveis como pedra são as lembranças - mesmo que se desvaneçam com o tempo e possam ser reinterpretadas.
Isso tudo transforma os pensamentos fardos muito doloridos para carregarmos: A mente está num lugar, o corpo noutro. Essa cisão nos persegue e é parte integrante de nós. Somos pedaços ambulantes espalhados pelo tempo e a ânsia de juntar nossos pedaços nos leva a frustração e ao desgosto. Um problema sem solução, um paradoxo.
Queremos arrumar a vida como arrumamos a nossa casa: deixar tudo alinhado, limpo e organizado em caixinhas. Queremos sanar nossas pendências com as outras pessoas e deixar tudo em "pratos limpos", mas não podemos! Justamente por sermos seres anacrônicos, cindidos, espalhados pelo tempo. Conciliar passado e presente - mente e corpo, cultura e natureza- é como querer matar o passarinho ontem atirando uma pedra hoje.

Sabe o foda? O foda mesmo? Tudo isso é óbvio demais pra ser falado, pra ser posto em texto ou em fala. Lendo e relendo tudo isso dou risada pela obviedade da nossa constituição dicotômica. Como é bobo o sofrimento humano. Como são bobas nossas aflições.



06/07/2016

Nossa, faz tanto tempo, não faz? Eu só queria dizer que eu passando pelas ruas de Jaçanã vi um motel do lado de um ferro-velho e, por um micro momento que logo após se perdeu, pude saber tudo o que era a minha cidade e tudo o que ela diz . Vi toda nossa crença pretensamente científica, nossas linhas invisíveis de ligação quase religiosa com o dito progresso - tudo tão universal que Levi Strauss até ficaria feliz. Eu soube onde todas as pessoas estavam indo. Toda essa estrutura fantasmagórica que faz coexistirem motéis e ferros-velhos.

05/04/2016

Sentimento de Ir

A sensação única de estar numa rodoviária de longos percursos. Este é o momento crucial, de tamanho sentimento e de turbilhão das vidas e suas possibilidades. Neste lugar só há a sensação de ver a moeda ser jogada num cara ou coroa eterno, como num gif bobo da internet: ficamos presos ao momento exato em que a moeda gira no ar das incertezas, sem jamais saber o resultado.

Essa sensação de imensidão; de únicas oportunidades; de tudo no nada, com certeza já foi sentida por muitos. Alguns pensadores definiriam isso apenas como "modernidade". Até mesmo Robert Johnson, ao gravar uma das primeiras músicas que se poderia gravar no mundo - Love in Vain, que se passa numa estação de trem - devia estar pensando nisso. E olha que não há nada mais justo que o blues para incorporar esse sentimento de rodoviária.

Minha primeira pontada no coração assim, de furacão, foi ao visitar um amigo querido em Minas Gerais. Voltei outra vez e outra ainda até que passei a voltar sem vê-lo. Retornei somente para Minas, que continuava lá parada e intocada. Minas Gerais, muito diferente de nós, humanos, com nossos tantos caminhos que cismam em desencontrar-se, o nosso movimento para lugar nenhum. Nossas palavras que não nos abrem estradas, mas sim buracos e abismos.

Só lhe digo que pessoas continuam com suas mochilas nas costas, esperando seus ônibus e aviões e caronas. Digo também que esse tipo, que viaja de canto a outro, incomoda demais a todos nós. Foi assim com os ciganos, os negros, os judeus e outros tantos povos nas guerras e crises: os mochileiros vira-mundo, os bolivianos discriminados em SP... e sabe o que mata?

Mata ver que essas pessoas assumiram percorrer um caminho, tragar a estrada, ao contrário de todos nós que pretensiosamente achamos que o caminho é só um meio para se chegar a algo maior, que já revelamos o sentido de nosso caminhar. Essas pessoas conseguiram sentir que o caminho é o próprio objetivo de uma vida - não há nada pra frente ou para trás, a não ser a própria andança.

15/02/2016

Dos Muros

http://petjair.blogspot.com.br/2012/03/experimentacoes-abstratas.html


Tudo tem um limite, você sabe. Uma linha traçada no chão ou no ar que separa algo de outra coisa ou acaba essa primeira para um nada, para um abismo desconhecido.

E quando falo tudo, é tudo mesmo. Qualquer mínima besteira, qualquer gesto, pensamento ou até mesmo olhar. Ninguém quer passar pelas linhas-limite - ainda mais suas próprias. 

A gente se mapeia quase que geograficamente. As linhas mais totais chegam até a se materializar em muros, cercas e portas físicas, concretas; Documentos, passaportes, papeis e sobrenomes.

Nossos muros físicos, nossa ânsia por privacidade, nossas máscaras diárias são um reflexo dos nossos limites inventados. "nossos" e "inventados" por que são coletivos como a roupa invisível do rei.